quinta-feira, 27 de novembro de 2014

‘Crescimento e redução da desigualdade não são excludentes’, diz Piketty



SÃO PAULO - "Seria um erro o Brasil imaginar que já fez o bastante para diminuir o nível de desigualdade e que pode desacelerar o processo agora". O economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller mundial "O capital no século XXI", se mostrou contrário à possibilidade de que a nova equipe econômica da presidente Dilma Rousseff enxugue gastos sociais. Autor do estudo que indica uma tendência de que a concentração de riqueza no mundo desenvolvido retorne em breve aos patamares das oligarquias do século XIX, ele afirma que a valorização do salário mínimo, o Bolsa Família e investimentos em educação pública são medidas importantes para reverter essa concentração de renda. Em São Paulo para divulgar seu livro, Piketty adiantou que nos próximos meses deve lançar um estudo sobre o Brasil, com dados da evolução da riqueza e da renda no país desde 1960 até hoje. Seus resultados preliminares apontam que os dados oficiais sobre desigualdade por aqui estão subestimados e que o Brasil é um país mais desigual do que os Estados Unidos.
A nova equipe econômica de Dilma acena com cortes nos gastos públicos para tentar retomar um ritmo acelerado de crescimento. Há o risco do congelamento de programas sociais. Qual a sua opinião sobre isso?
Seria um erro o Brasil imaginar que já fez o bastante para diminuir o nível de desigualdade e que pode desacelerar o processo agora. Iniciativas como o Bolsa Família e a política de valorização do mínimo são parte da solução para a desigualdade. O salário mínimo teve um grande impacto na redução da desigualdade nos últimos 15 anos, talvez tenha sido a principal política para aumentar a renda de 50% da população mais pobre do país e isso deveria continuar sendo uma política importante. Congelar esses benefícios seria desvalorizá-los, porque a inflação os corroeria rapidamente. É importante manter os programas até porque a educação pública no Brasil não é boa o bastante. Está progredindo, mas há muito a melhorar. O Brasil também deveria investir em uma reforma tributária, já que seu sistema de taxação não é progressivo o bastante de acordo com padrões internacionais. Enquanto a classe média fica sobrecarregada com impostos, as taxas sobre os ricos é muita baixa. E isso tudo é importante para aumentar a velocidade do crescimento do PIB no futuro.
Durante muito tempo acreditou-se que era preciso fazer o bolo crescer primeiro para depois dividi-lo. Faz sentido?
É um erro acreditar que, para crescer mais, deveríamos ignorar a desigualdade. No caso do Brasil, onde a desigualdade é extremamente alta de acordo com as estatísticas oficiais e devem ser ainda maiores porque tais estatísticas subestimam a realidade, é possível diminuir a desigualdade e aumentar o crescimento econômico ao mesmo tempo. É preciso ressaltar que muitas das histórias de sucesso em crescimento, particularmente na Ásia, em países como China, Taiwan e Coreia, foram baseadas em patamares muito menores de desigualdade comparando-se com a América Latina, especialmente com o Brasil. Quando a desigualdade é alta demais, isso atrapalha o crescimento. Ninguém quer igualdade total, o que também não é bom, mas casos extremos como o brasileiro não são funcionais.
Quando a desigualdade é um problema?
Não existe fórmula matemática para dizer isso, há quem use o coeficiente Gini para medir isso, mas eu acho que ele é muito abstrato. Prefiro olhar para o percentual de riqueza e renda que vai para os 50% mais pobres da população e a parcela que vai para os 10% mais ricos. Em meu livro, tento dar uma perspectiva histórica de quanto esses dois diferentes grupos da sociedade conseguem proporcionalmente de renda em 20 diferentes países nos últimos dois séculos. No Brasil, a proporção de renda que vai para os 10% mais ricos atinge mais de 50% do total produzido. É o mais alto do mundo e quer dizer que os 50% mais pobres acabam recebendo menos de 15% da renda. Isso limita a possibilidade de a metade da população, que fica na base da pirâmide social, investir em educação e qualificação. Para crescer no século XXI, é preciso ter uma grande fração da população capaz de produzir mais e melhor e, para isso, é preciso que mais pessoas possam acessar educação de qualidade. Não basta ter uma pequena elite intelectual e econômica.
A educação é um ponto central para a diminuição da desigualdade?
Sim. Peguemos o caso dos Estados Unidos. Ali você tem as dez melhores universidades do mundo, mas os 50% mais pobres dentre os americanos não vão para Harvard. E as faculdades e ensino médio a que eles têm acesso não são tão bons, comparando-se aos pobres do Japão e da Alemanha. E isso levou a um crescimento da desigualdade de renda nos Estados Unidos muito maior do que em outros países desenvolvidos como o Japão ou o norte da Europa. Por isso, é ótimo ter universidades de elite. Mas isso não é suficiente; você precisa expandir a qualidade no plano geral. Isso é uma lição que o Brasil também tem que aprender. E isso leva a população a conseguir melhores empregos, e o país a ocupar uma posição melhor na divisão internacional do trabalho. Isso é a chave para o crescimento.
A globalização tem um efeito positivo ou negativo sobre a desigualdade nos países?
A globalização tem sido uma força muito poderosa e positiva para diminuir desigualdades entre os países. É o que permitiu ao Brasil e à China acelerar seu ritmo de crescimento para se reunir às maiores economias do mundo. Mas uma das lições desse processo é que a convergência também pode acontecer dentro dos países. E isso depende de políticas públicas, não se pode contar apenas com as forças do mercado e da globalização para isso.
Então o capitalismo necessita de regulação?
Sem dúvida precisamos de regulação, precisamos de uma reforma na tributação para financiar escolas de melhor qualidade. precisamos de instituições políticas que funcionem bem e façam o mercado funcionar bem também.
Mas essa reforma tributária teria que ser um esforço global? Recentemente, o ator francês Gerard Depardieu tornou-se russo para impedir a incidência de impostos sobre sua fortuna. A fuga de capital é usada como justificativa por muitos países para não estabelecer impostos sobre fortunas.
Em primeiro lugar, é claro que precisamos de uma coordenação internacional nesse sentido, mas não podemos usar isso como desculpa para não fazer nada em nível nacional. O Brasil não pode esperar a perfeita governança global da ONU para estabelecer um regime progressivo de imposto de renda. O imposto sobre herança no Brasil é de apenas 4%, enquanto na Alemanha, esse imposto chega a 40% para os mais ricos. Não estou sugerindo que a Alemanha deveria diminuir seu imposto. Quanto ao esforço mundial, sem dúvida é um acordo difícil de obter, mas não impossível. E o Brasil poderia liderar esse processo no G-20 começando sua própria reforma tributária e aumentando sua transparência fiscal. Há assuntos mais difíceis de se obter acordos como o aquecimento global e estamos avançando, então sou otimista sobre isso.
O senhor disse que Bill Gates te falou que concordava com suas conclusões mas que não queria pagar mais impostos. Gates te sugeriu aumentar os impostos sobre consumo. Por que o senhor não acha que isso seja uma boa solução?
Bill Gates disse que aceitaria aumentos de até 80% nos impostos sobre consumo, o problema é que o conceito de consumo, especialmente para os ricos, não é bem definido. O que é o consumo se você ganha R$ 1 milhão por mês? É impossível gastar tanto dinheiro todo mês com consumo material. E se consumo é uma questão material, então esse imposto para os ricos ainda assim seria muito baixo. Isso não é aceitável porque leva a situações como a do (investidor americano) Warren Buffet, que declarou pagar menos impostos do que sua secretária. A maneira como você gasta seu dinheiro quando você é rico é diferente, porque os mais ricos consomem poder e influência. Você pode ser rico e usar isso de uma maneira filantrópica, como o Bill Gates com suas fundações. Ele acha que toma melhores decisões do que o governo com seu próprio dinheiro. Eu entendo o ponto de vista dele, é a perspectiva de um capitalista privado, mas isso não pode ser a regra, não se pode organizar uma sociedade a partir de decisões individuais. É ótimo ter filantropia, mas nenhuma sociedade se estrutura baseada em filantropia. E filantropia não é necessariamente algo desinteressado. É também uma forma de influenciar o processo político, de fazer lobby para um ou outro setor. Para promover o interesse comum não se pode deixar as contribuições ao Estado dependentes de interesses particulares. Além disso, a classe média e os pobres não aceitarão pagar pela manutenção de um estado de bem-estar social se a contribuição da elite não for ao menos proporcionalmente igual a deles. Mas hoje, em vários países, a elite paga muito menos do que a classe média. Se continuarmos taxando tanto a classe média, ela tende a desaparecer.
Há um senso comum no Brasil e em outros países de que já estamos pagando muito imposto e que o problema está na alocação desses recursos. O senhor concorda com isso?
Em termos gerais, acho que os pobres e a classe média estão pagando demais, por isso a necessidade da reforma. Não recomendo aumentar a arrecadação em países como França ou Alemanha, apenas redefinir quem paga mais. Dou um exemplo: hoje existe muito imposto na França, nos Estados Unidos sobre a compra de uma propriedade. Isso tornou muito difícil para aqueles que não tem família rica ou heranças comprar seu primeiro apartamento. Os preços do mercado imobiliário são cada vez mais altos e somado aos impostos inviabilizam o início da vida das gerações mais jovens. Em muitos países, o tanto de imposto que você paga se você tem 10 apartamentos ou um único sob hipoteca é o mesmo. Isso não faz sentido.
O senhor disse que não gostaria que seu livro fosse visto como algo pessimista. Mas quando o senhor descreve que a concentração de riqueza tende a ser cada vez maior a ponto de atingir os níveis das oligarquias do século XIX, isso destrói o sonho americano, a crença de que pelo trabalho chega-se ao sucesso. Como o senhor vê isso?
Penso que para a geração jovem que não tem família rica é muito mais difícil conseguir uma propriedade ou mobilidade social do que para a geração da década de 1960, 1970. Isso não quer dizer que não há solução e será o apocalipse. O sucesso do meu livro reflete que o interesse das pessoas, ela não querem deixar a economia apenas para economistas. As pessoas querem participar das decisões econômicas, o que é um primeiro passo para resolver isso. Meritocracia é um objetivo no capitalismo, mas não se pode achar que ela acontece naturalmente. Em todos os países a elite gostaria de dizer que sua riqueza é uma questão de meritocracia. Esse é o discurso dos vencedores do jogo, mas ele é irreal. E um escrutínio republicano dos dados que recolhi mostra isso, que o acesso a educação de qualidade é muito restrita e não depende de meritocracia. Mas eu ainda acho que vivemos em um mundo mais meritocrático do que o do século XIX, aquele descrito por Balzac em "Ilusões Perdidas". Balzac poderia estar escrevendo em 2014, mas agora temos mais chances de aprimorar a sociedade em que vivemos do que o personagem de Balzac no fim do século retrasado.
Há quem critique a proposta de taxação de riquezas dizendo que isso diminuiria investimentos e a produtividade e aumentaria o consumo e a inflação. Esse seria um problema do Brasil hoje. Como o senhor responde a essa crítica?
O problema do Brasil não é igualdade demais. Os pobres no Brasil estão longe de consumir muito. É difícil fazer os ricos pagarem mais impostos porque eles possuem mais influência política. Mas os ricos no Brasil não pagam impostos demais. A chanceler da Alemanha, Ângela Merkel, que não é uma esquerdista, não pretende propor que os alemães paguem apenas 4% de impostos sobre as heranças, como é no Brasil. Isso é uma questão de equilíbrio: o que precisamos é mais transparência sobre quanto os ricos ganham e os pobres ganham, e a evolução de renda e riqueza. Precisamos tornar esse debate mais concreto, baseado em dados, e menos ideológico.

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